Richard Dawkins [foto], o santo patrono dos descrentes, causou furor no início do ano durante um debate com o Arcebispo da Cantuária, que apontou que seu oponente era alguém normalmente descrito como o ateu mais famoso do mundo. “Não por mim”, respondeu Dawkins antes de prover sua costumeira explicação – um ser supremo é possível apesar de bastante improvável –, o que levou um jornal londrino a proclamar que o cético mais notório do planeta estava se rendendo. Longe disso. Dawkins, com 71 anos de idade, continua sendo um irreprimível e afiado crítico do dogmatismo religioso. Como qualquer cientista que desafia a Bíblia e sua versão poética da criação, ele passa boa parte do tempo defendendo a teoria darwiniana de que toda vida, incluindo a humana, evoluiu através dos anos a partir da seleção natural, algo muito diferente do que simplesmente ser moldado a uma dezena de milhares de anos atrás por uma mão inteligente, apesar de invisível.
Dawkins, que se aposentou na Universidade Oxford em 2008, após 13 anos como professor de compreensão pública da ciência (significando que ele dava aulas e escrevia livros), caiu nas graças do público em 1976, quando tinha 35 anos, com a publicação de “O Gene Egoísta”. O livro, que vendeu mais de um milhão de cópias, persuade o leitor de que a evolução acontece em nível genético; indivíduos morrem, mas os genes mais adequados sobrevivem. Desde então, Dawkins escreveu mais 10 best-sellers, incluindo os recentes “A Magia da Realidade: Como Nós Sabemos O que É Verdadeiro”. Após o onze de Setembro ele se tornou ainda mais sincero acerca de seu ceticismo, culminando em “Deus, um Delírio”, que dá sustentação para seus contínuos debates com religiosos. Publicado em 2006, o livro se tornou o mais popular de Dawkins, disponível em 31 línguas com 2 milhões de cópias vendidas. No mesmo ano ele fundou a Richard Dawkins Foundation for Reason and Science “para apoiar a educação científica, pensamento crítico e a compreensão evidenciada de um mundo natural, buscando superar o fundamentalismo religioso, a superstição, a intolerância e o sofrimento”. Seus livros o fizeram um congressista bastante popular e um campeão do pensamento crítico. Em março, ele palestrou para 20.000 pessoas no Reason Rally na Praça Nacional em Washington, D.C; na semana seguinte ele esteve no Forte Bragg, na Carolina do Norte, encorajando o primeiro encontro de soldados ateístas e agnósticos jamais permitido antes numa base militar americana.
Dawkins vive em Oxford com sua terceira esposa, Lalla Ward, conhecida pelo papel de Romana em Doctor Who. Mas ele raramente fica em casa por muito tempo, e o editor colaborador Chip Rowe teve de viajar por três cidades para completar esta conversa. Ele afirma: “Dawkins é um orador cuidadoso, de pavio curto diante bobagens (que nos cercam, especialmente entre os jornalistas ocasionais ou crentes), mas ele muda de postura e seus olhos brilham quando lhe pergunto sobre princípios evolutivos. Nos encontramos pela primeira vez em Las Vegas numa convenção para céticos. Conversamos novamente quando ele visitou Nova Iorque para uma palestra na Cooper Union e em Washington, quando ele palestrou na universidade de Howard; conversou com o diretor de sua fundação; agradeceu aos voluntários; e visitou a impressionante exibição da origem humana no Museu Nacional de História Natural. Durante o passeio com o curador da exibição, Dawkins parecia incomodado toda vez que era compelido a conversar, encarando furtivamente um glóbulo ocular fossilizado em cada direção, incluindo os dispostos numa parede de caveiras progressivamente modernas. Em certo ponto, duas moças se aproximaram. “Esse é o Richard Dawkins!”, comentou uma delas para a amiga, arregalando os olhos. Imagino que tenha sido algo como se encontrar com o Bono no Rock and Roll Hall of Fame.
"Se existisse um deus, eu perguntaria:
'Senhor, por que você foi para
tão longe para se esconder?'"
Playboy: O que significa esse A em seu colar?
Dawkins: Significa “ateísta”.
Como uma letra escarlate?
A função não é refletir isso. É parte de uma das campanhas da minha fundação. Isto significa que as pessoas devem demonstrar no que acreditam e dar bons motivos para tal. É um pouco análogo aos gays saindo do armário.
Sendo que ateístas podem se casar uns com os outros.
Sim, verdade.
Há alguma palavra que descreva melhor o descrente do que ateu? Darwin preferia o termo agnóstico. Alguns sugerem humanista, naturalista, descrente...
Darwin escolheu agnóstico por razões táticas. Ele disse que o homem comum não estava preparado para o ateísmo. Há uma bela história que a comediante Julia Sweeney conta sobre sua própria jornada de devota ao catolicismo para o ateísmo. Quando ela finalmente decidiu que era ateia, mencionaram tal fato num jornal. Sua mãe lhe passou um telefonema histérico e disse algo como “Eu não me importo se você não acreditar em Deus, mas ateia?” (Risos) O termo “iluminado” foi sugerido por um casal da Califórnia. Eu acho que é um ótimo termo, apesar de a maioria dos meus amigos ateus acharem que o isso sugere que religiosos não sejam tão brilhantes. Eu digo pra eles: “E qual o problema nisso?” (Risos)
Você se descreve como um agnóstico “fada do dente”. O que isso significa?
Um amigo meu prefere usar esse termo do que dizer ser ateu, querendo demonstrar que não se pode comprovar a não-existência de Deus, apesar de ele ser algo como a “fada do dente”.
Então você não nega completamente a possibilidade de um ser supremo. Críticos veem isso como uma brecha.
Você pode pensar o mesmo se achar que há, também, uma brecha para comprovar a existência da fada do dente.
Parece-me um argumento de Bertrand Russell, que disse que enquanto podia afirmar que um bule orbitava pelo sol, entre a Terra e Marte, ele jamais esperaria que alguém acreditasse nele só por não poderem provar tal fato.
É a mesma ideia. É um pouco injusto dizer que é como a fada do dente. Eu acho que a ideia de um deus em particular, como Zeus ou Jeová, é tão improvável quanto a da fada, mas a probabilidade da existência de alguma inteligência criativa não é tão ridícula.
Então você não partilha da filosofia de Pascal. Ele era um filósofo do século 17 que dizia ser mais interessante acreditar em Deus, pois se não acreditar e estiver errado...
O preço da falha é bem alto. Mas e se você escolhesse o deus errado para louvar? E se você chegasse lá e em vez de Jeová encontrasse Baal? (Risos) E mesmo se escolhesse o deus certo, por que ele tem essa obsessão por adoração? E mais, qualquer deus minimamente decente perceberá qualquer traço de fingimento. As chances de existir algo assim são baixas, mas não importa, pois as recompensas são bem altas. Ao crer, você também pode estar desperdiçando sua vida. Você vai para a igreja todo domingo, paga promessa, se veste mal. Você tem uma vida horrorosa, e quando morre fica por isso aí.
Suponhamos que um deus exista e que você tenha a chance de lhe fazer uma pergunta. Qual seria?
Eu perguntaria: “Senhor, por que você foi para tão longe para se esconder?”.
Você tem amigos fervorosamente religiosos?
Não. Não que eu os evite; é que os círculos em que me encaixo são compostos por gente educada, inteligente, e não há pessoas religiosas entre tais grupos que eu conheça. Tenho amizade com alguns bispos e vicários que acreditam em algo e gostam de música e vidraçarias.
Albert Einstein e Stephen Hawking referenciam Deus em seus escritos. Eles usam tal palavra no sentido de um criador inteligente?
Certamente que não. Eles usam a palavra deus num sentido poético, metafórico. Einstein particularmente amava usar a palavra para conciliar a ideia de mistério, o que acho que cientistas decentes fazem. Mas hoje em dia nós aprendemos que é melhor usar outras palavras para não haver mal-entendidos, como foi no caso de Einstein. E o pobre coitado foi bem claro. “Eu não acredito em um deus pessoal”, repetiu ele várias e várias vezes. De algum modo, ele causou a própria confusão. Hawking a usa de um modo similar em “Uma Breve História do Tempo”. Na famosa última frase de seu trabalho ele diz que se entendêssemos o universo, “então saberíamos como funciona a mente de Deus”. Mais uma vez, ele está usando o deus Einsteniano, não no sentido religioso. Então, em “O Grande Projeto”, quando Hawking diz que o universo poderia ter se originado do nada, ele não está dando as costas para Deus; suas crenças ainda são as mesmas.
Você se diverte bastante desconstruindo a ideia de um criador inteligente. Você afirma que Deus fez o leopardo rápido suficiente para pegar uma gazela e a gazela rápida o suficiente para fugir do leopardo...
Sim. Deus é sádico?
...além do péssimo projeto de nos fazer comer e respirar através do mesmo mecanismo, tornando fácil engasgar e morrer.
Ou o nervo laríngeo, que passa por uma artéria no peito e então retorna à laringe.
Não é muito eficiente.
Nem numa girafa o seria.
Você afirma que cristãos veneram um “Deus criado”. Alguns respondem que Deus não foi criado; ele é eterno.
Poderíamos dizer o mesmo sobre o universo. Poderíamos dizer que os elefantes suportam o mundo em suas costas. E sempre houve elefantes. Respondo isso.
Os ataques do Onze de Setembro pareceram fazer você ainda mais militante no que tange seu ateísmo, como se a sua paciência houvesse finalmente estourado.
Teve um pouco disso. Muitas pessoas no mundo sentiram que deviam se erguer contra a ameaça e fazerem parte da luta. Qualquer sugestão de anti-americanismo em minha mente desapareceu. Ich bin ein Amerikaner (Nota do Tradutor: “Eu sou um americano”, em alemão). Então, George W. Bush destruiu isso. Foi um momento anti-islâmico e também antirreligioso para mim, pois eu estava nauseado quando a resposta de “Allahu Akbar” foi “Deus é conosco” ou qualquer outro ditado cristão – soou como se os líderes católicos americanos se unissem para apoiar a força que foi a origem da crise.
Você culpa o conceito de vida após a morte pelo Onze de Setembro?.
Sim. Normalmente, quando um avião é sequestrado, assume-se que os sequestradores querem tirar umas férias. O jogo muda se os sequestradores esperam que tais férias cheguem após a morte, pois é assim que conseguirão o melhor do paraíso.
Você fala da parte das 72 virgens em que o Corão afirma que esperam os mártires.
Sim. Jovens feios demais para conseguir uma mulher no mundo real buscam as que estão no paraíso. Mas o que quero dizer é que essas pessoas realmente acreditam no que elas dizem acreditar, algo que nem sempre acontece com o cristão. Nenhum cristão se anima ante a morte.
O que vai acontecer quando você morrer?
Bem, devo ser enterrado ou cremado.
Engraçadinho. Mas sem a parte da vida após a morte, como você se conforta na hora do desespero?
Com amor e compaixão humanos. Mas quando reflito mais, em momentos em que me concentro – conforto não é bem a palavra certa, mas eu consigo forças quando reflito no privilégio que é estar vivo e no privilégio que é ter um cérebro capaz de entender, limitadamente, o motivo da minha existência, a beleza deste mundo e a beleza do processo evolutivo. A magnificência do universo e a sensação de fragilidade que o espaço e este tempo profundamente geológico dão nos atordoa, mas de um jeito estranhamente reconfortante. É bom saber que você é parte de um cenário tão grande.
Você se preocupa com uma futura tentativa dos seus oponentes de falsificarem uma conversão à beira da morte, como os criacionistas tentaram com Darwin?
Algo um pouco mais preocupante é o efeito Antony Flew. Flew foi um filósofo ateu britânico que se converteu quando idoso. Ele ficou gagá. Daí é inevitável.
Então, se você se converter é por ter enlouquecido?
Sim. Depois que meu amigo Cristopher Hitchens foi diagnosticado com câncer, perguntaram-lhe se haveria uma conversão. Ele disse que se houvesse não lhe seria verdadeiro. O que é bastante assustador é quando religiosos costumam explorar isso, como fizeram no caso de Flew, que numa idade avançada foi persuadido a colocar seu nome num livro dizendo que se convertera a alguma forma de crença. Ele não apenas não escreveu no livro como também não o leu. (Risos).
Sua convocação para o militantismo ateu é um dos motivos pelo qual você aparece como um personagem em South Park. Os criadores do desenho, Trey Parker e Matt Stone, foram acusados de serem ateus, então pensaram quem seria o maior militante ateu possível.
É o único episódio de South Park que já vi. Houve a tentativa de fazer algo satirizando a ideia de um futuro utópico, onde diferentes seitas ateístas lutam umas com as outras. Mas as minhas funções durante o episódio eram ridículas na maior parte do tempo, como a sodomização de um travesti careca...
Transexual, na verdade.
Transexual, que seja. Isso não é sátira por que não tem nada a ver com aquilo que sou. E a parte escatológica, onde tinha alguém atirando cocô, que acertava minha nuca – isso nem foi engraçado. Eu não entendo por que eles não puderam ir direto pra parte da luta entre grupos de ateus, algo que possui um pouco de verdadeiro. Isso me lembra um pouco a Frente Popular da Judeia e a Frente dos Povos da Judeia, no “A Vida de Brian” do Monty Python.
O presidente Obama mencionou os “descrentes” no seu discurso inaugural, causando espanto. Mas quando você pensa em crenças religiosas, um dos maiores grupos nos Estados Unidos é o de ateístas e agnósticos. Por que vocês são ignorados durante discussões políticas?
Eis uma boa afirmação. Claro, ela depende de como você faz as divisões. Cristãos são, de longe, o maior grupo. Se você dividir os cristãos em suas denominações, agnósticos e ateístas são o terceiro maior grupo, atrás dos católicos e batistas. Isso é interessante ao analisarmos pelo lado da falta de influência dos descrentes. Se contarmos o número de judeus, certamente observadores, obteremos um grupo ainda menor que o dos descrentes. Ainda assim, judeus possuem tremenda influência. Não crítico isso – palmas para eles. Mas poderíamos fazer o mesmo.
Você não espera paz entre Israel e a Palestina.
Não há muita esperança quando os protagonistas mais influentes fundamentam sua hostilidade em livros de dois mil anos de idade dos quais eles acreditam que lhes dá direito a terras.
O que você pensa de Jesus?
As evidências de sua existência são surpreendentemente precárias. Os primeiros livros do Novo Testamento foram as Epístolas, e não os Evangelhos. É quase como se São Paulo e os outros que escreveram as Epístolas não estivessem interessados na existência de Jesus. Mesmo se ele for ficcional, quem escreveu sua história estava muito à frente do tempo em relação à filosofia moral.
Você leu a Bíblia?
Eu não li tudo, mas meu conhecimento bíblico é bem maior do que o da maioria dos fundamentalistas cristãos.
Qual seu versículo predileto?
Meu livro favorito é o do Eclesiastes. É uma bela poesia enquanto escrita no Inglês do século 17, e me disseram que fica melhor ainda em hebreu. “Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade!”. A Canção das Canções é formidável, e é ainda mais engraçado em hebreu, algo como uma música para bêbados.
Você comentou que se Jesus existiu e caminhou para a morte como a Bíblia descreve, então tivemos um ato ‘puramente insano’, como descrito por você.
Não há evidência de que o próprio Jesus tenha sido puramente insano, mas a doutrina inventada posterior à morte dele por nossos pecados certamente o é. É puramente perturbador pensar que o criador do universo – capaz de inventar as leis da física e o processo evolutivo –, este possuidor de intelecto sobrenatural, não conseguiu pensar em um meio melhor de perdoar nossos pecados do que se torturar até a morte. E que terrível lição dizer que nós nascemos no pecado por causa do pecado original de Adão, um homem que até a Igreja Católica afirma não existir.
Escutamos constantemente que a América é uma nação católica e que seus pais fundadores foram todos cristãos.
Eles eram teístas. Não acreditavam em um deus particular, ou um que interferia em problemas humanos. E eles estavam cientes de que não queriam os Estados Unidos como uma nação cristã.
"Hitler não era ateu, ele era
católico romano. Mas eu não
ligo para o que ele era"
Mas você deve escutar bastante que se ateus possuíssem o controle acabariam sendo como Hitler e Stálin.
Hitler não era ateu, ele era católico romano. Mas eu não ligo para o que ele era. Não há conexão lógica entre ateísmo e o acontecimento de coisas ruins, nem de coisas boas, aliás. O ateísmo é apenas uma crença filosófica sobre a falta de uma inteligência criativa no mundo. Qualquer um que pense que você precisa de uma religião para ser bom está sendo bom por um motivo errado. Eu prefiro ser bom por razões morais. A moralidade surgiu antes da religião, e a moral muda independentemente da religiosidade. Até pessoas que confiam na Bíblia usam critérios morais não-bíblicos. Se seus critérios são escriturais, então você não tem motivo para escolher o versículo que diz para virar a outra face e não o que diz para apedrejar pessoas até a morte. Então você encontra sua moral sem a necessidade da Bíblia.
Você diz que a ciência está perdendo a guerra contra a religião.
Eu disse que estávamos perdendo? Eu devia estar num péssimo dia.
Surpreendia-lhe que a ciência ainda estava sendo desafiada.
Eu fico surpreso, mas eu não sei se estamos perdendo a batalha. Se você observar atentamente, houve evolução através dos séculos. Pessoas religiosas gostam de dizer que Isaac Newton era religioso. Oras, mas é claro que era – ele viveu antes de Darwin. É difícil ser ateu antes de Darwin.
Você teria sido o cara incapaz de acreditar em Zeus.
Eu me questionaria sobre os detalhes de Zeus atirando relâmpagos, mas eu provavelmente acreditaria em um ser sobrenatural. Quando se olha ao redor neste mundo vivo e se vê a complexidade de uma célula e a elegância de uma árvore – “Creio que jamais verei/ Um poema tão amável quanto uma árvore/ Poemas são feitos por tolos como eu/ mas para criar a árvore, somente Deus” – eu ficaria comovido por isso. Darwin mudou tudo. Ele cedeu uma simples, explicável, útil história sobre como você pode entender não só a complexidade da árvore como também a do ser humano através da funcionalidade física bastante especial que é o processo de evolução por seleção natural. Ah, se Newton vivesse o suficiente para ver isso.
O biólogo evolucionário Stephen Jay Gould via ciência como...
Non-overlapping magisteria (Magistérios não-interferentes), ou NOMA.
...completamente separáveis.
Isso é política pura. Gould estava tentando vencer batalhas no debate entre criação-evolução dizendo às pessoas religiosas “Você não deve se preocupar. A evolução é amigável aos religiosos”. E o único modo que pôde pensar em tranquilizar os religiosos foi dizer que as duas áreas se ocupam de temas diferentes. Mas ele generosamente cedeu os domínios da moral e das questões fundamentais à religião, o que é a última coisa que você deve fazer. Hoje, a ciência não – talvez nunca possa – responder a todas as questões sobre a existência e as origens das leis fundamentais da natureza. Mas o quê faz você pensar que a religião pode? Se a ciência não pode lhe responder, nada poderá.
Alguns cientistas dizem que você deveria parar de falar sobre o ateísmo porque isso atribula as águas no debate sobre a evolução.
Se você está tentando vencer a batalha tática nas escolas americanas, então é melhor mentir e dizer que a evolução é amiga da religião. Não desejo condenar pessoas que mentem por motivos táticos, mas eu não quero fazer isso. Para mim, isso é só mais uma briguinha dentro da grande guerra contra a irracionalidade.
Você diz que se a ciência e a religião são realmente inconciliáveis, então os católicos deveriam parar de acreditar em milagres.
Certamente. O milagre é uma péssima intervenção no jogo da ciência. A resposta dada por alguém ajoelhado e rezando sobre o motivo de acreditarem em deus sempre envolverá milagres, incluindo o da criação. Se você não permite isso à religião, então você acabou de destruir o motivo para todos serem religiosos.
Você se sente desencorajado pelos contínuos ataques contra a razão?
Não. Eu acesso muito a internet e leio o que os jovens andam escrevendo. Vejo um vertiginoso crescimento do bom-senso, da racionalidade, da irreverência. A América está dividida em duas metades. Há os idiotas descerebrados de Sarah Palin de um lado e um grande número de pessoas intelectuais, educadas e inteligentes do outro. Eu acho difícil acreditar que espécimes da Idade da Pedra acabarão vencendo no final. Uma horrível quantidade de gente que se diz religiosa simplesmente não conhece alternativas. Analisando suas crenças, descobre-se que são praticamente as mesmas –todos temos uma sensação de admiração e respeito perante a grandiosidade do universo.
Você é dos que pensam que a evolução da crença religiosa é um “produto acidental”.
Quando algo é disseminado entre uma espécie, você imagina que isso tenha algum valor para a sobrevivência. Não há valor de sobrevivência na religião em si – apesar de talvez haver – mas há o tipo de valor que se refere a predisposições psicológicas como obediência e autoridade. Esses valores são fortemente essenciais para crianças. Visto que elas são frágeis e não conhecem o mundo, confiam na sabedoria paterna. Mas não possuem meios de distinguir sabedoria boa para a sobrevivência da sabedoria puramente estúpida.
Seus pais lhe criaram na Igreja Anglicana.
Eu não desejaria o mal a meus pais ao dizer que me criaram religiosamente. Fui enviado às melhores escolas, e a maioria delas, na época, eram anglicanas. Eu tinha orações diárias e leituras da Bíblia. Uma me aceitou aos treze anos.
Quando você teve seu primeiro contato com a Origem das Espécies?
Dois anos depois.
E fez sua cabeça.
Sim. Uma ideia simplicíssima que explica as complexidades da cauda do pavão, do saltitar do antílope, da aceleração da pantera, do voar do beija-flor, do pensar do humano. São maquinários extremamente complicados, e ainda assim entendemos o porquê deles existirem.
Seus pais eram naturalistas que, como você diz, podiam identificar qualquer tipo de planta na Grã-Bretanha.
Meu pai lia sobre botânica em Oxford. Eu li sobre zoologia lá. Eu não era naturalista como ele, mas amava caminhar pelas florestas com alguém que as conhecia.
Ele te influenciou de alguma forma?
Curiosidade, curiosidade científica.
E a sua mãe?
Ela não tinha formação em ciências, mas tinha um conhecimento muito bom sobre plantas também. Era uma das coisas que os dois adoravam juntos, eu acho. Ela me educou, e aprendi muito com ela.
Você nasceu em Nairóbi. Por que seus pais estavam lá?
Por causa dos conhecimentos que possuíam sobre botânica, meu pai se juntou ao departamento agrário do Serviço Colonial Civil e foi enviado ao Leste da África, na região onde ficava a Niassalândia e hoje é Malawi. Então, ele foi convocado para a Artilharia Africana do Rei, um regimento britânico localizado em Nairóbi. Daí, se moveu ao norte do Quênia e minha mãe o seguiu. Ela acabou passando por algumas dificuldades. Visto que ela não estava legalmente no Quênia, teve alguns problemas para sair de lá. (Risos).
O que lembra daquele tempo?
Lembro muito da Niassalândia. Lembro dos aromas e paisagens e cores. Era uma existência privilegiada, cheia de servos. Era como se houvéssemos voltado cem anos no tempo: vivíamos numa estranha sociedade patriarcal.
Ao completar oito anos, você se mudou com os pais para a Inglaterra.
Meu pai herdou os bens dos Dawkins. Bens que estiveram na família desde 1723, nas mãos de um primo muito distante – tão distante que nunca ouvíramos falar dele. Esse primo desejava que uma fazenda sua continuasse nas mãos de um Dawkins, mas não havia filhos homens. Foi brilhante da parte dele escolher o meu pai por ele ter formação em agricultura, embora tropical, além de possuir o tipo de conhecimento empresarial capaz de transformar a herança em uma fazenda para trabalho.
O que ele cultivava?
Ele tinha gado Jersey, que, como sabemos, dá muito creme. Ele fornecia creme para todos os hotéis locais e colégios de Oxford. Também criava porcos. A área, hoje, não é tão grande. Um Dawkins excêntrico do século 19 vendeu grande parte das terras para pagar por processos, então parte das heranças da família desapareceu.
Você escreveu seu primeiro livro durante um apagão décadas depois de se mudar para a Inglaterra.
Em 1972 havia grande agitação industrial na Grã-Bretanha, e por dias inteiros não tínhamos energia. Eu não podia continuar minha pesquisa, então eu decidi começar a escrever “O Gene Egoísta”.
"Existe uma resposta educada
a quem pergunta por que
você não vai à igreja?"
Você é um grande fã da ficção científica. O que te atrai nela?
Eu prefiro o tipo de ficção científica que toma algum aspecto da ciência e o modifica. Conheço um romance adorável de Daniel Galouye chamado “O Universo Escuro”, que é sobre um grupo de pessoas que vivem em total escuridão e não conhecem a luz. Então a luz se torna um mito. Eles usam frases como “Luz toda poderosa” e fazem cerimônias quando sentem uma lâmpada sagrada. Galouye mudou apenas uma coisa – ele retirou a luz – e procurou por todas as consequências disso.
Algo oposto à criação de um mundo de fantasia.
Princesas cavalgando unicórnios não é ficção científica.
O assessor da Playboy recebeu esta questão de um leitor: “Sinto-me inconformado quando uma pessoa que acabo de conhecer me pergunta se vou a igreja, pois não vou. Existe algum modo educado para responder?”.
Eu diria, “Não, eu não vou à igreja. Você vai? Se sim, por quê?”.
Isto é o que você disse numa carta a sua filha quando ela tinha dez anos.