Uma Civilização Capitalista, resenha do artigo do jurista Fábio Comparato
A situação política, social,
econômica e jurídica que vivemos no Brasil atual, com violentos e acalorados
debates ideológicos, crise econômica, fragilidade jurídica (interferência entre
os poderes executivo, legislativo e judiciário), corrupção e constante pressão
dos mercados financeiros, fazem da leitura do artigo “Capitalismo: Civilização
e Poder” de autoria do renomado jurista, advogado, escritor, professor
aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e especialista
na área de Direitos Humanos e Constitucional, Fábio Konder Comparato, um
importante instrumento para compreendermos essa nossa atual situação nacional,
embora este não seja o propósito deste texto. A ideia central do supracitado
artigo é a de que o capitalismo não se caracteriza apenas como um sistema
econômico mundial, mas sim que ele, com o tempo, passou a apresentar
características particulares que o assemelham mais ao conceito de civilização
do que de sistema econômico. Além disso, conforme o autor, além do capitalismo
ser uma civilização, é a primeira civilização mundial, pois abrange todos os
recantos do planeta, embora algumas regiões participem em maior grau de
envolvimento do que outras neste processo. Este conceito de capitalismo civilização
está presente também em outras obras do mesmo autor, onde ele aprofunda ainda
mais o tema.
Embora vivamos sob a égide de uma
civilização capitalista, a grande maioria das pessoas não se dá conta disso,
conforme o autor, já que este é um fato consolidado bem recentemente e também
porque o capitalismo se apresenta como um sistema puramente econômico e,
seguindo o conceito de Adam Smith, como um sistema que se desenvolveu
naturalmente no decorrer da história da humanidade. Para esclarecer este fenômeno
de capitalismo/civilização e demonstrar que ele não se restringe a um sistema
econômico apenas, Comparato passa a esmiuçar diversas características do
capitalismo que o assemelham com modelos ditos civilizatórios. Para isso
debruça-se sobre vários autores, filósofos, juristas e suas teorias, para nos
dar uma ideia mais clara do que significa civilização e quais as
características mais marcantes que estabelecem uma. Dos conceitos passados e
modernos, alguns dos fundamentos principais que norteiam uma civilização, cita
o autor a consciência ou mentalidade coletiva, os usos e costumes, as ideias,
os sentimentos e os valores gerais, assim como as instituições de organização
social. Esclarece ainda que a mentalidade coletiva é um dos principais pilares
de uma civilização e que essa mentalidade coletiva pode se desdobrar em
diversos tipos como mentalidade de classes, etárias, de gênero, urbana,
campestre, entre outras. Dentro do conceito de mentalidade de classes e divisão
social em classes hierárquicas o autor busca as origens deste tipo de
organização da sociedade em um passado europeu distante, o dos povos ditos
indo-europeus que dividiam sua sociedade em três grupos específicos:
sacerdotes, aristocratas-guerreiros e agricultores. Somente os dois primeiros grupos
detinham poder e privilégios, os agricultores, mais numerosos estavam sempre
sujeitos aos primeiros. Esta tripartição social indo-européia atingiu seu auge
no período Medieval Europeu, onde a população se dividia entre clérigos,
aristocratas-militares e os camponeses.
É ainda, conforme o artigo, na Idade
Média, com o renascimento comercial e o surgimento da figura do comerciante,
chamado de burguês, já que morava nas novas cidades que surgiam, os burgos, é
que vai ter início uma mudança de mentalidade coletiva que vai suplantar o
mundo medieval e fazer surgir o mundo moderno, que aos poucos passa a ser
dominado por estes novos comerciantes, que passam a expandir seu poder
econômico através de uma ideologia que visa o lucro e assim passam a acumular dinheiro
e bens móveis, mas que se mantêm alijados como proprietários de terras e, por
isso, fora do poder, visto que somente a posse de terras outorgava títulos de
nobreza e, por conseguinte, poder e privilégios jurídicos. A princípio
condenados pelo clero e mal vistos pela nobreza, passam, aos poucos, com seu
dinheiro e consequente poder econômico a se aliarem ou a enfrentarem os nobres
e clérigos, conseguindo, aos poucos, minar o poder destes mudando com o tempo a
mentalidade reinante no medievo e fazendo surgir esta nova mentalidade moderna,
que passa a contar até mesmo com a benção do cristianismo, quando o pregador
João Calvino justifica moralmente a busca capitalista pelo lucro com passagens
bíblicas, o que até então era imoral pela igreja.
Desta forma, a complexidade do
direito sobre a terra do período medieval, que dificultava sua transformação em
bem de exploração capitalista passa a dar lugar a ideia de dominium romano (direito de usar, fruir, dispor de uma coisa) até
desembocar na noção de propriedade definida no Código de Napoleão em 1804 e
usada até hoje. O conceito de bem comum medieval passa a dar lugar ao conceito
de propriedade privada no mundo moderno e esse conceito de Propriedade Privada
é a pedra fundamental do edifício jurídico capitalista. Assim, ricos e
poderosos, os burgueses colocaram o poder econômico acima do poder tradicional
dos aristocratas-guerreiros e das autoridades religiosas, fazendo com que o
racionalismo científico, a busca pelo lucro, a transformação de tudo em mercadoria,
inclusive o próprio homem, passassem a ser a tônica do mundo moderno
capitalista. As principais
características deste Poder Capitalista são, entre outros, ter surgido
originalmente sem título jurídico, já que os burgueses tinham dinheiro, mas não
a terra; subsistir somente pela concentração de capital e expansão geográfica e
também por ter conquistado a hegemonia mundial submetendo o poder militar,
aristocrático e religioso seja pela força ou aliando-se a eles através de
financiamentos e empréstimos, por exemplo. Para manter o poder e a influência
no mundo, o capitalismo e seus agentes usam do poder ideológico para
apresentarem seus interesses como interesses gerais, convencendo o público não
pela razão, mas pelo sentimento, através das propagandas vinculadas nos meios
de comunicação de massa com alcance global, tendo em vista que estes meios de
comunicação estão, quase que na totalidade, sob o comando do mesmo capital que
defende nas suas páginas e programações.
Por fim, o autor aponta que, após a
crise financeira de 2008, podemos perceber que este modelo de civilização está
esgotado, concentrando cada vez mais recursos nas mãos de poucos e tornando a
economia mundial insustentável, fazendo-se necessário o surgimento de um novo
modelo econômico civilizatório, chamado por ele de pós-capitalista com
predominância do bem comum sobre o interesse particular, a defesa do princípio
democrático e do Estado de Direito, para que assim se possa estruturar uma
economia com maior função social e que não tenha simplesmente o lucro e a
acumulação como metas a serem alcançadas de qualquer forma. Embora as
considerações finais do autor pareçam bastante utópicas, devemos levar em conta
que muitas das suas observações são bastante pertinentes, que vemos um mundo esgotado
de seus recursos naturais, onde a concentração de rendas e a precarização do
trabalho assalariado tornam as condições gerais de vida cada vez mais
deploráveis não só em países do chamado terceiro mundo como também do primeiro,
onde o abismo entre ricos e pobres tem aumentado constantemente, o que nos faz
concordar com o autor, de que um mundo pós-capitalista se faz necessário
urgentemente para garantir, até mesmo, a continuidade das condições de vida no
planeta e a nossa própria sobrevivência como humanidade.